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Perez Esquivel

Adolfo Pérez Esquivel: Brasil e Venezuela
enfrentaram imposição do pensamento único
pelos EUA

 
Nascido em 1931 em Buenos Aires, Adolfo Pérez Esquivel é arquiteto e escultor. Conhecido por sua militância pacifista, recebeu em 1980 o Prêmio Nobel da Paz por sua dedicação à defesa dos direitos humanos na América ibérica. Atualmente, é um dos mais ativos militantes na oposição contra a Área de Livre Comércio das Américas. Uma de suas denúncias é de que as polícias de diversos países da América Latina estão formando esquadrões paramilitares compostos por crianças, uma operação que ele compara à criação da Juventude Hitlerista na Alemanha nazista.
Em conversa com Terra Magazine, Pérez Esquivel também censurou fortemente os Estados Unidos por aplicarem em sua "guerra contra o terrorismo" um equivalente ao Plano Condor de seqüestros e torturas que os norte-americanos toleravam na era das ditaduras militares latino americanas. O que se segue são os trechos mais relevantes desta conversa.
Terra Magazine - Alguns ensaístas - Michael Ignatieff serve como exemplo - estão anunciando "o fim da era dos direitos humanos", sobretudo a partir da irrupção do terrorismo, no começo do século. O senhor concorda com essa visão?
Pérez Esquivel - A primeira coisa que precisa ser esclarecida para responder a uma pergunta tão ampla é que consideramos os direitos humanos como um marco da construção democrática. Não se trata de coisas distintas. Se não existem direitos humanos, as democracias se debilitam e deixam de ser democracias. Portanto, os direitos humanos são fatores permanentes. Acontece, no entanto, que em determinadas sociedades eles podem ter maior ou menor impacto de acordo com o momento histórico. Mas mesmo quando têm menor impacto aparente, nos meios de comunicação, não significa que desapareceram. Neste momento, em particular -e estou falando em termos coletivos-, há maior consciência sobre os direitos humanos, porque as pessoas estão se tornando conscientes das coisas que afetam diretamente suas vidas. Também se conseguiu, através da luta por esses direitos, que os povos deixem de ser espectadores e se assumam como protagonistas. Essa postura ativa está cada vez mais forte, mais vigente.
Como se pode avaliar essa vigência, essa força?
É necessário compreender os direitos humanos em sua totalidade. Porque muitas vezes, quando nos referimos aos direitos humanos, falamos de tortura, de cárceres, de desaparecimento forçado de pessoas... Falamos de direitos individuais, mas poucas vezes se fala dos direitos dos povos. É um aspecto do tema sobre o qual as Nações Unidas vêm tentando atuar com muita força. Lembro que participei, em 1993, da assembléia da ONU em Genebra na qual foi complementado o marco conceitual dos direitos humanos, com o estabelecimento do direito ao desenvolvimento sustentável, ao meio ambiente, que antes nem sequer era mencionado como direito humano, ao desenvolvimento social e cultural etc. É natural que, se avaliarmos por esse padrão a situação de nossos países, encontraremos deficiências. Os direitos humanos se consolidaram sobretudo no plano jurídico, e em alguns lugares o desenvolvimento político não foi simétrico. A Argentina, creio eu, tem sido um exemplo e um país pioneiro em termos jurídicos, naquilo que denominamos luta contra a impunidade; porque é impossível construir um processo democrático tendo por base a impunidade. E isto só foi possível porque, quando se pretendeu fechar as comportas do passado com as leis de "ponto final", a "obediência devida" e o indulto presidencial, surgiram os espaços necessários a aplicar o direito internacional. Ainda estamos em um processo de elaboração e afirmação dos direitos humanos.
Esse processo, há que reconhecer, continua incompleto: em muitas regiões do mundo, os direitos humanos continuam sendo violados como em séculos passados.
É verdade, em muitos países continua a haver desaparecidos, torturas. Podemos mencionar o caso da Colômbia. Eu tenho acompanhado os julgamentos sobre os genocídios africanos, em Ruanda e no Congo. São casos em que o direito internacional voltou a operar. Por conta do assassinato de nove sacerdotes espanhóis na África, levamos um processo por violação de direitos humanos aos tribunais de Madri, que estão julgando os africanos responsáveis por esses crimes, da mesma maneira que julgaram genocidas argentinos no passado.
Voltemos ao caso da Colômbia, talvez o mais angustiante da América Latina, atualmente. Lá voltou a existir uma associação aberta entre um governo formalmente democrático e um poder paramilitar que se coloca à margem da lei. Não se trata de uma contradição aberrante, para a nossa era?
Conheço essa realidade perfeitamente porque há alguns anos presidi a uma comissão internacional de investigação jurídica, na Colômbia. Posso recordar que saímos do país muito mais preocupados do que quando chegamos, devido às violações que lá constatamos. O relatório que produzimos foi levado à ONU. Também estive no Haiti, outro caso grave.
O Haiti, além de grave, é um caso em que pelo menos três países da região -Argentina, Brasil e Chile- estão comprometidos, respondendo por parte das forças internacionais de paz, conhecidas como MINUSTAH, em uma missão que não parece ter contribuído para uma melhora da situação.
São cometidas violações sistemáticas contra os direitos humanos no país, e isso é algo que só um Estado pode cometer. A realidade local é muito complexa. O Haiti é um país sem instituições, de extrema pobreza, que foi sistematicamente invadido por Estados Unidos, França e Canadá. Existem sérias denúncias sobre o comportamento dos membros da MINUSTAH no país, e o povo haitiano percebe a presença da missão de paz como se fosse a de uma força invasora, de ocupação. Muitos recursos foram investidos em armamentos e quase nada no desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo, e conversei sobre isso com o presidente haitiano René Preval, o país precisa de um exército, e lhe restam apenas três mil policiais da pior qualidade. Por isso, uma retirada da MINUSTAH eliminaria qualquer traço de estabilidade e arremessaria o país a uma guerra civil ainda mais aberta. Enquanto não forem destinados ao Haiti os recursos necessários -médicos, educacionais e de desenvolvimento econômico-, a armadilha em que a MINUSTAH caiu não poderá ser desarmada.
Creio que este seja um bom ponto no diálogo para deixar de lado por um instante os casos de gravidade excepcional -Colômbia e Haiti- e perguntar sobre a situação dos direitos humanos nas democracias consolidadas da região: Argentina, Brasil, Chile e México. Desde setembro de 2001, parece que os Estados Unidos conseguiram impor uma redução na vigência desses direitos, acompanhada por outras democracias. Isso procede?
O caso dos Estados Unidos é muito específico; pela primeira vez as políticas adotadas pelo país o deixaram exposto aos olhos da comunidade internacional. Antes, Washington fazia a mesma coisa -apoiando as ditaduras e a doutrina de segurança nacional-, mas de maneira mais dissimulada. Desde a invasão ao Iraque, ficaram em evidência todos esses mecanismos. Eu diria, até, que desde antes de 2001, na verdade a partir da queda do comunismo, nos anos 90, o poder imperial se manifestou e terminou exposto. É algo de assombroso: não se trata apenas de violações dos direitos humanos no Iraque ou em Guantánamo, mas do seqüestro de pessoas na Europa -participei de diversas denúncias a esse respeito- a fim de conduzi-las a terceiros países (Egito, Jordânia) para lá serem torturadas. Trata-se da implementação direta da "Operação Condor" que os norte-americanos toleraram, no passado, quando praticada indiretamente, pelas ditaduras latino-americanas.
Existe alguma tendência, entre os países latino-americanos, a seguir o rumo ditado pelos Estados Unidos?
Pela primeira vez, diversos países começam a enfrentar a imposição do pensamento único, a massificação deliberada que nega a singularidade das culturas e procura desestruturá-las. Os países que reagiram sofreram toda espécie de agressão, como no caso da Venezuela de Hugo Chávez. O Brasil é um segundo exemplo.
O Brasil? Muitos consideram que, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o país tenha aderido a esse pensamento único, em lugar de combatê-lo.
Conheço Lula há mais de 30 anos, do movimento sindical. Lula é mais cauteloso que Chávez, mas conseguiu -inegavelmente- fortalecer as políticas sociais. De qualquer maneira, há uma intenção e uma política de assistência evidentes. No caso de Lula, é preciso distinguir entre a vontade do governo e as responsabilidades de Estado. Quanto a esse último aspecto, aquilo que já foi deixado amarrado não pode ser mudado do dia para a noite. No Uruguai, a situação é a mesma, com o impasse quanto aos contratos concedidos ao grupo Botnia no governo de Jorge Battle e herdados pela administração Tabaré Vázquez. Não é fácil desatar esses nós. Na região, sempre há uma distinção muito grande entre o que se quer fazer e o que se pode fazer.

Terra Magazine

Leia esta notícia no original em:
Terra -  Terra Magazine 
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1800931-EI6580,00.html


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